Ao distribuir a competência tributária aos entes federativos, a Constituição Federal, além de fixar a materialidade da incidência dos tributos que confere a cada um dos entes, acaba por demarcar, implicitamente, outro aspecto da hipótese de incidência dos tributos: o territorial ou aspecto espacial.
Assim, ao exercer a competência tributária que lhes foi atribuída a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios somente poderão fazer valer a lei instituidora de seus tributos, e por consequência cobrá-los, observando a materialidade da hipótese de incidência que ocorrer em seus respectivos territórios.
No tocante ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), cada município é competente para cobrar o imposto cujos fatos geradores se perfazem no âmbito de seus territórios municipais. Ocorre que há situações em que a prestação de serviços, hipótese de incidência do ISS, extravasa os limites de determinado município, com um prestador sediado num município, prestando serviço em outro. Isso poderia gerar conflitos de competência entre os dois municípios, ambos se julgando competentes para cobrar o tributo, ou ainda, se as alíquotas fossem diferentes, o prestador poderia se sentir tendente a recolher o imposto para aquele município que o taxasse de modo mais brando.
Para dirimir e evitar os possíveis conflitos de competência é que a CF/88, no inciso I do artigo 146, confere à lei completar o papel de dispor sobre conflitos de competência em matéria tributária. No tocante ao imposto sobre serviços é a Lei Complementar 116/2003 que, ao regular o tributo, desempenha esse papel. Tal norma define a hipótese de incidência como sendo a prestação dos serviços previstos em sua lista anexa (artigo 1º), bem como prevê, para a maior parte dos serviços ali listados, que o serviço considera-se prestado “no local do estabelecimento prestador ou, na falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador” — artigo 3º, salvo no caso das exceções que expressamente prevê.
Vejamos o dispositivo legal:
Art. 3º O serviço considera-se prestado e o imposto devido no local do estabelecimento prestador ou, na falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador, exceto nas hipóteses previstas nos incisos I a XXII, quando o imposto será devido no local:
I – do estabelecimento do tomador ou intermediário do serviço ou, na falta de estabelecimento, onde ele estiver domiciliado, na hipótese do § 1º do art. 1º desta Lei Complementar;
II – da instalação dos andaimes, palcos, coberturas e outras estruturas, no caso dos serviços descritos no subitem 3.05 da lista anexa;
III – da execução da obra, no caso dos serviços descritos no subitem 7.02 e 7.19 da lista anexa;[…] (grifos nossos)
Dessa forma, prestado um serviço que segue a regra geral, por exemplo, serviços de contabilidade, advocacia, informática, mesmo que eventualmente o prestador se desloque a outro município para executar o serviço, ou parte deste, o imposto caberá ao município em que se localiza seu estabelecimento.
Fixado o aspecto espacial do imposto pela LC 116/2003, os conflitos de competência entre os municípios estariam solucionados, ou pelo menos reduzidos Isto, não fosse a guerra fiscal, deflagrada quando municípios adjacentes às grandes capitais, ou a municípios de porte considerável, reduziram suas alíquotas, inclusive para valores inferiores alíquota mínima prevista no artigo 88 do ADCT, visando atrair prestadores de outros municípios, a fim de lá se estabelecerem.
Devido à vantagem fiscal, até grandes empresas prestadoras tomam a atitude de transferir seus estabelecimentos para esses municípios com tributação menor — os chamados paraísos fiscais do ISS. Desconsiderando-se à questão da inconstitucionalidade da infringência à alíquota mínima, a transferência do estabelecimento prestador de grandes empresas para tais municípios, apesar da concorrência desleal, não traz problemas quanto ao conflito de competência tributária e ao critério espacial do imposto, caso realmente tenham transferido sua infraestrutura prestadora para o outro território, pois neste caso estando lá localizado o estabelecimento prestador, a hipótese de incidência lá ocorrerá.
Contudo, o que se viu em grande escala, e que ainda ocorre com um pouco menos de ênfase, é a existência de prestadores que, sem transferir sua infraestrutura para o território desses paraísos fiscais, procedem à abertura de uma filial, ou mesmo transferem sua pessoa jurídica para tais municípios apenas formalmente, ou seja, simulam a existência de um estabelecimento prestador em outro município com tributação favorecida, mas de fato continuam prestando os serviços por meio do estabelecimento existente em outro município, cuja alíquota é mais desvantajosa. Tal prática é convencionalmente denominada como “simulação de estabelecimento”.
Essa prática, pela qual o prestador, simula prestar serviços por intermédio de um estabelecimento faticamente fictício, ou pelo menos incapaz de realizar a prestação de serviços, por meio de inscrição de sua pessoa jurídica num município cuja alíquota do ISS é menor que a do município em que efetivamente está localizado seu estabelecimento, e com isso obter vantagem tributária ilícita.
Desviando o foco do aspecto criminal, tal simulação gera um problema de aparente conflito de competência tributária entre o município em que está de fato o estabelecimento prestador e o outro apontado formalmente como sujeito ativo do tributo. Este conflito, no entanto é apenas aparente, pois a própria LC 116/2003 traz a solução.
Essa solução está na definição de estabelecimento prestador, expressamente dada pelo artigo 4º da norma complementar, bem como na percepção correta do local fixado pelo artigo 3º da mesma norma em que se considera prestado o serviço e configurada a hipótese de incidência. O artigo 3º prevê que o serviço é considerado prestado no local do “estabelecimento prestador” e não no “estabelecimento do prestador”, ou seja, não é qualquer estabelecimento que o prestador possua, seja formal ou faticamente, que atrai a incidência tributária, mas sim aquele estabelecimento que efetivamente seja o estabelecimento prestador, ou seja, que efetivamente desenvolva a atividade de prestar serviços.
E, como dito, o artigo 4º da LC 116/2003 define como se configura esse estabelecimento prestador:
Art. 4º Considera-se estabelecimento prestador o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas. (grifos nossos)
Então, o estabelecimento prestador, local se materializa a incidência do ISS para a maior parte dos serviços, é o local em que o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços. A maioria dos municípios descreve em sua legislação alguns elementos que configuram a constatação da existência do estabelecimento prestador, como é o caso, por exemplo, da legislação paulistana, conforme o § 1º do artigo 4º da Lei 13.701/2003:
§ 1º A existência de estabelecimento prestador que configure unidade econômica ou profissional é indicada pela conjugação, parcial ou total, dos seguintes elementos:
I – manutenção de pessoal, material, máquinas, instrumentos e equipamentos próprios ou de terceiros necessários à execução dos serviços;
II – estrutura organizacional ou administrativa;
III – inscrição nos órgãos previdenciários;
IV – indicação como domicílio fiscal para efeito de outros tributos;
V – permanência ou ânimo de permanecer no local, para a exploração econômica de atividade de prestação de serviços, exteriorizada, inclusive, através da indicação do endereço em impressos, formulários, correspondências, “site” na internet, propaganda ou publicidade, contratos, contas de telefone, contas de fornecimento de energia elétrica, água ou gás, em nome do prestador, seu representante ou preposto.
Esses elementos auxiliam na verificação de que o estabelecimento possui condições de prestar serviços, como por exemplo, a manutenção de infraestrutura e de pessoal e equipamentos. No entanto, para determinados serviços, pode não haver a necessidade de grande infraestrutura e de pessoal. Assim, o que se deve buscar para identificar qual o estabelecimento prestador, é constatar o local onde o prestador executa suas atividades.
Com isso em mente, a fiscalização tributária pode descaracterizar um suposto estabelecimento indicado pelo contribuinte como localizado num município com tributação favorecida, comprovando que este não possui qualquer infraestrutura para o desenvolvimento da atividade, ou, que o prestador não executa ali suas atividades. E, em muitos casos, tal prova é até fácil, já que há muitas situações em que se encontram dezenas ou centenas de empresas prestadoras de serviços que apontam como seus endereços um mesmo imóvel de poucos metros quadrados, evidenciando a flagrante simulação de seus estabelecimentos prestadores.
Mas, para atrair a incidência do imposto para seus municípios, não basta a fiscalização tributária descaracterizar a existência do estabelecimento prestador no outro município. É necessário que comprove que o estabelecimento prestador está em seu território, pois do contrário, não haverá suporte para a incidência do tributo, ou poderá gerar algum conflito de competência. Imagine-se uma situação em que seja descaracterizado um estabelecimento num município, paraíso fiscal, entre as cidades de São Paulo e Campinas; ambas as cidades são municípios de porte, e cumprem os limites constitucionais da alíquota do imposto, de modo que ambas sofrem com a concorrência desleal de municípios adjacentes. Assim, o prestador que estivesse porventura simulando seu estabelecimento, poderia estar efetivame nte em uma das duas, sendo necessário comprovar o efetivo local de suas atividades.
Outra situação que pode causar grande dificuldade é de uma grande empresa que possui estrutura tanto no município que se julga prejudicado pela guerra fiscal, como no município com tributação favorecida, direcionar seus fatos geradores para o município com alíquota a menor. Neste caso, havendo estabelecimento em ambos os territórios, não seria possível descaracterizar a existência do estabelecimento que está no paraíso fiscal. Resta comprovar qual é o real estabelecimento prestador dos serviços, lembrando que o imposto incide no local do estabelecimento prestador, e não no local do estabelecimento do prestador. Mas a comprovação deve ser realizada.
Todo lançamento tributário decorrente de autuação fiscal deve ser sempre efetuado com base em dados inequívocos e fundamentados de forma sólida pela administração pública. Somente mediante provas da real ocorrência do fato, amparado pelas hipóteses normativas é que o agente público competente pode exigir do sujeito passivo o cumprimento do direito subjetivo em matéria tributária.
Quando se trata de questões relativas ao estabelecimento comercial, não deve ser diferente , até porque a questão de fraude requer absoluto cuidado para ser apurado! Para ser autuado não basta a simples alegação do agente fiscal ao lavrar o auto de infração.
A fiscalização quando iniciada, e normalmente denominada operação fiscal, deverá solicitar do fiscalizado os seguintes documentos: a) todos os documentos de constituição da empresa; b) os registros contábeis; c) as transações financeiras; d) as declarações fiscais; e) e demais comprovantes que possam ratificar a alegação da fraude (fotos dos estabelecimentos , contas telefônicas , conta de energia, RAIS e outros). De posse de tais documentos o agente fiscal competente analisará se as informações prestadas pelo fiscalizado são procedentes e verificará , considerando todo o conjunto de documentos, qual é de fato o aspecto espacial da relação jurídica estabelecida com os tomadores de serviço , ou seja, local/municipalidade em que o tributo deveria ter sido recolhido.
Aí está a importância da investigação apurada, no procedimento fiscal, para a produção de provas.Ao finalizar o auto de infração, depois de examinado os documentos apresentados pelo fiscalizado, o agente fiscal deverá anexá-los para fundamentar o auto de infração, sob pena de tornar o lançamento nulo por ausência de fundamentação probatória.
Esta questão é diariamente enfrentada pelos conselhos de tributos, bem como pelo Judiciário, que devem se pautar sempre nas provas anexadas nos autos pela fiscalização, para julgamento da matéria em sede de recurso.
Importante salientar que o julgador ao analisar os autos pode e deve solicitar novos dados para tomar a sua decisão. Toda matéria de fraude em direito necessita de apurada análise de provas.
É, portanto, imperativo que o agente fiscal competente esgote todos os meios de prova para constituir créditos tributários e aplicar as penalidades cabíveis. Sem dados probatórios concretos não há em se falar em simulação de estabelecimento. Não é bastante no procedimento de fiscalização anexar apenas contratos de prestação de serviços e controle financeiro.
A prática de simulação de estabelecimento é uma das fraudes fiscais que mais assolam a tributação municipal, e gera problemas de ordem não só tributária, mas também concorrencial e econômica. Se combate é imperativo, contudo, necessita estar pautado em provas e na legislação complementar atinente ao ISS.
Fonte: Consultor Jurídico – 29/08/2016.