A relação tributária consubstancia-se em um vínculo de poder. O Estado exercendo sua soberania institui tributos para financiar suas atividades. O nascedouro da obrigação se dá a partir da adequação de um fato (gerador) à norma instituidora do tributo. Em seguida, caberá ao contribuinte adimplir com suas obrigações frente ao Estado e, quanto a este último, se utilizar de todos os meios legais para a cobrança da prestação observada.

O liame contribuinte-Estado é finalizado com a observância de uma das causas extintivas regularmente previstas no Código Tributário Nacional. Nesse ponto, uma das modalidades de extinção do crédito tributário refere-se a compensação cujo conceito, segundo Paulo de Barros Carvalho, pressupõe duas relações jurídicas diferentes, em que o credor de uma dela é devedor da outra e vice-versa. Além disso, observa como requisito essencial a reciprocidade das obrigações, liquidez das dívidas, exigibilidade das prestações e fungibilidade das coisas devidas.

Adicionalmente, por mais que exista disposição normativa delineando a extinção do tributo nas hipóteses de compensação, por tratar-se de norma que afeta bens públicos, essa modalidade de extinção somente será observada quando da existência de lei autorizando-a.

Ainda que existam diversas previsões legais tratando do tema, a compensação tributária sempre gerou dúvidas, em especial com relação aos títulos executivos contra ente estatal gerados por decisões transitadas em julgado em prejuízo da Fazenda (precatórios).

O contribuinte poderia (em tese) compensar sua dívida tributária utilizando-se do precatório de sua propriedade ou adquirido de terceiro (aquisição mediante autorização constitucional).

Ocorre que, como exposto, para a prática da compensação se faz essencial uma norma que regulamente a matéria, algo inexistente na maioria dos Estados e Municípios da Federação. Dessa forma, restou inequívoca a impossibilidade de utilização do crédito oriundo de precatório com o objetivo de saldar dívidas fiscais.

O cenário foi alterado com a aprovação da EC 30/00, cujo artigo 2° acresceu dispositivos ao artigo 78 do ADCT, em especial no que tange o poder liberatório do pagamento de tributos quando do inadimplemento das prestações anuais preestabelecidas para quitação de precatórios.

A partir da leitura do texto constitucional muitos sugeriram a seguinte situação: os precatórios pendentes de pagamento e os decorrentes de ações judiciais iniciadas até 31/12/99 que não foram quitados no prazo estabelecido, liberariam o contribuinte de qualquer obrigação tributária proveniente da respectiva entidade.

Como já esperado, após a promulgação do texto a situação precária das finanças públicas continuou a mesma e os precatórios não foram pagos na data aprazada, fato que ensejou o início da compensação tributária.

As autoridades fazendárias, por sua vez, rebelaram-se contra a utilização do citado instituto (compensação mediante precatório), ocasionando a jurisdicionalização da questão. O debate era incessante e com posicionamentos dicotômicos em âmbito jurisprudencial, ora autorizando a compensação ora considerando-a imprópria.

Ao analisar o tópico, o pleno do STF, atento às dúvidas quanto a aplicação do artigo 78 da ADCT, entendeu por bem garantir repercussão geral à matéria, sobrestando todas as demandas que versavam sobre o tema até decisão final acerca da constitucionalidade da compensação.

É possível concluir que a situação permanece em aberto, pois inexiste posição final da Suprema Corte acerca da interpretação adequada do artigo 2°, da EC 30/00.

Apesar de não haver decisão definitiva, os órgãos fazendários indicam a impossibilidade de compensação com o uso de precatório, chegando ao ponto de considerá-la ato ilícito ajustável aos tipos penais da lei 8.137/90.

Em muitos casos, empresas estão sendo prejudicadas pela errônea caracterização da situação pela Fazenda, cujo entendimento assevera que a tentativa de compensação tributária pelo contribuinte nada mais é do que simulação e fraude para não quitar a obrigação principal.

No Estado de São Paulo foi emitido comunicado pela coordenadoria de administração tributária expondo sobre a impossibilidade de compensação do ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação) com a utilização de precatório e, mesmo com a situação jurisdicionalizada, é praxe o encaminhamento de representação fiscal ao Ministério Público apontando para existência de delitos contra a ordem tributária.

Avaliando a situação sob a perspectiva penal observamos que a conduta em si não é passível de processamento e sanção.

Inicialmente, a nosso ver, é nítida a atipicidade da conduta, pois o estabelecimento do tipo prescinde de complementação sob o ponto de vista tributário. Desse modo, não há que se falar em supressão do tributo quando ainda está em curso procedimento sobre a validação ou não da compensação e, consequentemente, da extinção do crédito.

Ademais, fica evidente a ausência de dolo na conduta. Em muitos casos em que o precatório judicial foi escriturado e em seguida pleiteada a compensação do tributo em esfera judicial, o representante da empresa objetivava adimplir com sua obrigação, porém de forma diversa do pagamento usual, seja pela facilidade e justiça tributária decorrente da compensação, seja pela situação financeira delicada da companhia, que não suporta a alta carga tributária imposta pelo legislador pátrio.

Em nenhum momento se nota o elemento subjetivo referente ao não recolhimento proposital através de artimanha ou ato fraudulento, mas apenas a tentativa de obter benefício através de hipótese ainda não sedimentada. Ainda que tenhamos em mente o posicionamento dos Tribunais sobre o dolo genérico em crimes dessa natureza, acreditamos que nos casos como o citado, não há o menor vínculo fático que aponte para a vontade de cometer o delito.

Por fim, fica claro que não há prejuízo à Fazenda, pois o tributo não foi suprimido, mas quitado por meio de uma compensação com crédito equivalente. A compensação tributária nestes casos poderia servir como instrumento adequado para equalizar as contas públicas e acabar com o problema sistêmico do atraso no pagamento dos precatórios.

Vimos a possibilidade de compensação como solução para a má gestão do passivo estatal. Fomentar a utilização do Direito Penal neste tipo de circunstância abala as estruturas sociais causando insegurança jurídica e desviando a finalidade desse ramo do Direito, transmutando-o em um instrumento de cobrança, fato (no mínimo) lamentável!

 

Fonte: Migalhas – 06/10/2015.

 

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