A 1ª Turma do TRT-MG, por maioria de votos, julgou favoravelmente o recurso interposto pelo comprador de um apartamento e excluiu a penhora correspondente à sua fração ideal da edificação, em processo de execução fiscal movido pela União contra a construtora. Acompanhando o voto da relatora, desembargadora Maria Cecília Alves Pinto, a maioria dos julgadores da Turma entendeu que não se comprovou qualquer fraude do comprador, já que ele adquiriu o apartamento de boa-fé, em contrato de compra e venda assinado com a construtora antes mesmo do início da ação de execução fiscal. Ele só foi impedido de efetuar o registro do imóvel porque foi vítima de um “calote” da construtora, que recebeu o preço combinado, mas entregou ao comprador apenas o “esqueleto” do apartamento prometido.
Promessa de compra e venda: negócio válido
O juiz de primeiro grau não acolheu os embargos de terceiro opostos pelo comprador do imóvel, ao constatar a ausência do registro de propriedade do bem. Mas a relatora seguiu um caminho diferente. Ela ressaltou que, de fato, nos termos do artigo 1.227 do Código Civil Brasileiro – CCB, a prova da propriedade do imóvel se faz por meio de registro da escritura no cartório de registro de imóveis (CRI), quando se torna oponível contra terceiros.
Entretanto, de outro lado, conforme notou a desembargadora, o recorrente apresentou o contrato de promessa de compra e venda da unidade autônoma (apartamento), registrado em cartório de notas, além dos depósitos bancários dos pagamentos que efetuou à construtora executada. Sendo assim, ele encontra garantias na legislação civil, que também protege os direitos de propriedade do “comprador no contrato de promessa de compra e venda”, denominado, no meio jurídico, como “promitente comprador”.
Para fundamentar seu voto, a relatora citou o artigo 1.125 do CCB, que classifica como direito real (ou de propriedade) o direito do “comprador” no contrato de promessa de compra e venda. Ela também fez referência ao artigo 1.417 do CCB, que prevê que o “promitente comprador” passa a ter “direito real à aquisição do imóvel” e, ainda, ao artigo 1.418 do mesmo Código, que permite ao comprador exigir do vendedor a outorga da escritura definitiva de compra e venda ou, ainda, a adjudicação do imóvel, caso a escritura lhe seja negada.
Na decisão, a relatora frisou que o Decreto-Lei nº 58/37, que regula o “loteamento e a venda de terrenos para pagamento em prestações”, dispõe, em seu artigo 22, que os contratos de compromisso de compra e venda e cessão de direitos de imóveis não loteados, sem cláusula de arrependimento, com o preço pago no ato, ou em prestações, desde que inscritos a qualquer tempo, atribuem aos compromissos o caráter de “direito real oponível a terceiros”. Prosseguindo nos fundamentos da decisão, a desembargadora acrescentou que o próprio artigo 1.245 do CCB, em seus parágrafos, prevê exceções legais para a presunção de propriedade contida no registro da escritura do imóvel, estabelecendo que ela poderá ser excluída em ação própria. “A ação de Usucapião é mais uma dessas exceções”, lembrou a desembargadora, já que representa modo de aquisição da propriedade imóvel pela posse, simplesmente declarada por sentença quando são preenchidos os requisitos legais (artigo 1.241/CCB).
Ausência de registro imobiliário X comprador de boa-fé
Ante o contexto, concluiu a relatora que o fato de não haver o registro da compra e venda no Cartório dechaveirodedo.jpg Registro de Imóveis, não exclui, só por isso, os direitos do recorrente, comprador de boa fé, inclusive o de se insurgir contra a penhora, conforme entendimento pacificado na Súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça: “É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro”.
Além do mais, conforme ponderado pela julgadora, o registro só não foi realizado por culpa da própria construtora, que não cumpriu sua obrigação de efetuar o registro do memorial de incorporação no cartório de imóveis, pré-requisito para oferta pública das unidades autônomas futuras (art. 32 da Lei 4.591/64), dando um calote nos compradores, inclusive no recorrente, e abandonando a obra “no esqueleto”. No entanto, explicou a relatora que isso não leva à nulidade do contrato de promessa de compra e venda, citando jurisprudência do STJ (no julgamento do Resp. 192315/MG), que afasta a nulidade desse tipo de contrato pelo descumprimento do art. 32 da Lei n. 4.591/64, exatamente como ocorreu no caso.
Falha do Poder Público – Em seu voto, a desembargadora lembrou ainda a responsabilidade do poder público quanto a essa irregularidade (ausência do arquivamento do memorial de incorporação), já que cabe a ele fiscalizar as obras (poder de polícia), o que não fez, pois permitiu-se que a incorporadora oferecesse imóveis, à margem da lei.
E não foi só. Como destacado pela julgadora, o contrato de compra e venda não se referiu ao terreno penhorado na execução fiscal, mas ao apartamento que seria construído naquele local. E mais: ficou claro que o recorrente adquiriu o imóvel em setembro/2009 e efetuou os pagamentos pactuados no contrato de promessa de compra e venda muito antes do ajuizamento da execução fiscal, em julho/2012. Ou seja, na época em que o contrato de promessa de compra e venda foi firmado não havia qualquer impedimento anotado sobre o imóvel. A averbação de ajuizamento de ação de execução ocorreu apenas em setembro/2014.
Ao analisar todas as circunstâncias do caso, a relatora concluiu ser inquestionável a boa-fé do comprador, não tendo ele praticado qualquer ato com intuito de fraudar a execução fiscal. E explicou: “O registro do imóvel somente será viável após conclusão das obras e individualização das unidades do condomínio, com a regularização perante o município (certidão do “habite-se”). A ausência de registro do contrato de promessa de compra e venda se deve à inexistência das unidades autônomas e do arquivamento do memorial de incorporação, responsabilidade que é da incorporadora. Além disso, a eficácia da alienação do bem imóvel não se limita à efetivação do registro. O registro, embora trate de requisito de validade (pressuposto formal), visa dar publicidade do negócio a terceiros, o que, entretanto, não pode prevalecer sobre a questão central, que é a real propriedade do bem imóvel”.
Ponderou a magistrada que nosso sistema legal assegura o princípio da boa-fé objetiva nos contratos, precisamente no artigo 422/CC, segundo o qual: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. Seguindo o mesmo caminho, a jurisprudência tem conferido validade aos negócios firmados por meio de contrato de promessa de compra e venda de imóveis, mesmo sem o registro junto ao cartório de registro de imóveis, desde que exista prova da boa-fé do comprador (AIRR – 2310-40.2012.5.02.0078, AIRR – 2310-40.2012.5.02.0078).
Ao proferir a decisão final, a desembargadora fez questão de frisar que a ausência de registro não se deveu à inércia do comprador, mas por ato da incorporadora, que não cumpriu o prometido. E, para esse triste desfecho, contribuíram decisivamente a inexistência do registro memorial de incorporação e a falta de fiscalização do Poder Público, no sentido de impedir a oferta dos apartamentos ao público em geral. “Além disso, o agravante fez o que pôde, pois, diante da paralisação das obras e da ciência da situação econômica da empresa, ajuizou ações contra a Construtora, que acabaram resultando no impedimento de transferência do imóvel, anotado em 09.05.2016, no processo n. 18816.002850-5, que tramita na 2ª Vara Cível de Nova Lima.”, pontuou.
Diante da inexistência de prova de fraude praticada pelo adquirente de boa-fé de unidade autônoma inacabada que seria construída no lote penhorado na execução fiscal, a relatora assim concluiu o seu voto: “Considerando todas circunstancias que justificam a ausência do registro no CRI do contrato de promessa de compra e venda e, ainda, o dever do Estado de zelar pelos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição da República, especificamente sobre a função social da propriedade (art. 5º, XXIII) e o direito de propriedade (art. 5º, XXII), sem se esquecer do princípio da boa-fé objetiva nos contratos (art. 422/CC), nesse caso, deve-se ser declarada insubsistente a penhora e arrematação do imóvel, no que diz respeito à fração ideal correspondente ao imóvel adquirido pelo agravante”, arrematou.
Portanto, a relatora deu provimento ao recurso do comprador, no aspecto, revertendo a penhora sobre a sua fração ideal do imóvel, no que foi acompanhada pela maioria dos julgadores da Turma.
PJe-0011410-64.2016.5.03.0138 (AP) – Data 20/02/2017
Fonte: TRT3 17/04/17