“O que é pior: liberdade sem
segurança ou segurança sem
liberdade? A escolha é nossa, a
marcha da tecnologia não para”

Na última sexta-feira (22/7), estava a caminho da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), no Rio de Janeiro, para assistir à mesa redonda sobre o tema “Repatriação de ativos lícitos do exterior e a aplicação do RERCT – o cenário atual e suas perspectivas”[1].
Lia o jornal O Globo e deparei-me com essa profunda reflexão do jornalista Nelson Motta em sua coluna semanal que criticava as decisões judiciais que têm reiteradamente determinado o bloqueio do aplicativo WhatsApp: “Os juízes de Teresina, de Lagarto e de Duque de Caxias tinham as melhores intenções, quebrar o sigilo de suspeitos de pedofilia e tráfico de drogas. Mas só conseguiram punir cem milhões de inocentes que precisam tocar suas vidas e seus negócios com um aplicativo simples e eficiente, em que podem se comunicar com segurança e privacidade — e de graça”. E, após concluir que a criptografia do aplicativo — chave da proteção da privacidade — é um avanço para a liberdade individual e uma ameaça para a segurança coletiva, lança questionamento fundamental para a sociedade contemporânea: o que é pior? Liberdade sem segurança ou segurança sem liberdade?
Pergunta altamente complexa, que se inicia com uma formulação pessimista. O que é pior? Ambos os valores são caríssimos à sociedade. Liberdades individuais são conquistas históricas da civilização. Segurança coletiva é função primordial do Estado. Todos querem ser livres e seguros. Será possível garantir ambos adequadamente em um mundo em pé de guerra?
O restabelecimento do aplicativo foi determinado por liminar proferida pelo ministro Lewandowski. Como bem observou o articulista, a liminar foi dada “em nome da liberdade de expressão, mas a questão é sobre o direito à privacidade”.

Touché!

Nunca as fronteiras entre o público e o privado foram tão tênues. Nunca estivemos tão expostos. Vivemos a era da nudez digital. Patrimônios individuais são despudoradamente desnudados com a obtenção ilícita de informações privadas por hackers, que alimentam jornalistas ditos investigativos. A insegurança a que estamos todos expostos é imensa e se tornará ainda maior quando entrar em pleno funcionamento a tão festejada troca automática de informações entre os países por meio dos mecanismos do Common Reporting Standards (CRS) da OCDE, que o Brasil já é aderente. Sistemas informáticos “cuspirão” informações a torto e a direito, e detalhes de nossas vidas privadas passarão a circular pelas repartições fiscais e, mesmo com toda gama de proteções legais, em pouco tempo serão expostas nas redes sociais, pois na era digital o vazamento é incontrolável.
Foi precisamente por causa da inexorabilidade do conhecimento dessas informações patrimoniais, especialmente bancárias, porventura não reveladas às autoridades fiscais e monetárias brasileiras, mas, primordialmente, por fortes interesses arrecadatórios, que se editou a Lei 13.254, de 13 de janeiro de 2016, que dispõe sobre o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT).
Em apertadíssima síntese, o RERCT é um regime pelo qual a apresentação de uma declaração (DERCAT) acompanhada do pagamento de 30% do valor do patrimônio de origem lícita detido no exterior ainda não declarado servirá como o “preço” da anistia de exigências tributárias pretéritas e de crimes de sonegação fiscal, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Os 30% dividem-se em 15% de Imposto de Renda e 15% de multa (artigos 4º, 5º, 6º e 8º).
A existência de patrimônio de origem lícita no exterior é algo assaz frequente na classe média urbana brasileira. Já abordamos as razões em coluna anterior[2] e não iremos nos repetir. Porém, é fundamental ter presente que um dos crimes cometido pelos que detinham essa poupança no exterior é meramente o da falta de declaração, equiparada à evasão de divisas (artigo 22, parágrafo único da Lei 7.492/86). Ora, o Brasil é um dos poucos países do mundo (não ousarei dizer o único) que tem um sistema de declaração pormenorizada de bens e direitos para as autoridades fiscais e cambiais. Na maior parte dos países, o que se reclama &eacut e; a falta de pagamento de tributos sobre rendimentos, mas jamais a falta de declaração do “principal”.
O RERCT é o tema mais importante no domínio tributário em 2016, e mesmo que inúmeras dúvidas venham sendo didaticamente esclarecidas pela Receita Federal, por meio de um manual de perguntas e respostas (Ato Declaratório Interpretativo 05, de 11 de julho de 2016), o certo é que ainda perdura uma grande questão cuja resolução se nos afigura ser a chave para o sucesso do regime.
A questão central que se coloca no momento a respeito do RERCT consiste em saber se o montante do patrimônio objeto de regularização deverá ser sua imagem estática em 31 de dezembro de 2014 (“fotografia”), data eleita pela lei como da aquisição de um acréscimo patrimonial equivalente ao montante dos ativos objeto de regularização, data do “fato gerador” presumido, em que se aplica a alíquota vigente para tributar ganhos de capital (15%) e a taxa de câmbio para conversão em reais; ou seria a imagem dinâmica nos períodos pretéritos, de modo que à situação patrimonial identificada em 31 de dezembro de 2014 somar-se-iam, assim, os montantes despendidos no passado (“filme”), ou seja, os valores gastos anteriormente a 31 de dezembro de 2014 deveriam também ser objeto de regularização para que o contribuinte se beneficie plenamente da anistia. A segunda orientação foi adotada pela Receita, com fundamento no Parecer PGFN/CAT 1.036/2016.
Embora bem fundamentada, a opinião não nos parece ser condizente com amens legis, com o princípio da praticidade, e já está a provocar grande insegurança nos contribuintes, pondo em risco a confiança na adesão ao regime.
Insegurança porque não há qualquer disposição expressa na lei nesse sentido; muitas declarações já se fizeram com base nessa leitura, digamos, simplificada. Com efeito, o texto legal é categórico em que o contribuinte irá apresentar declaração única de regularização específica contendo a descrição pormenorizada dos recursos, bens e direitos de qualquer natureza de que seja titular em 31 de dezembro de 2014 a serem regularizados, com o seu respectivo valor em real. Apenas no caso de inexistência de saldo ou de título de propriedade em 31 de dezembro é que a declaração é meramente descritiva de condutas e indicará os bens que possuiu. A lei quis, assim, permitir que a anistia não fosse seletiva em relação àqueles que ainda dispunham de bens e direitos em 2014, mas, em mom ento, algum exigiu o maior valor patrimonial como base da tributação.
Por outras palavras: ou há saldo e o valor a declarar é o do saldo, ou não há saldo e se quiser se regularizar o contribuinte declarará o que teve no passado. Não parece ter sido prevista uma terceira opção em que há duas declarações do saldo existente em 31/12/2014 e do saldo inexistente naquela mesma data.
E a mais complexa das dúvidas. Por quantos anos seria essa retroação? Até 2012, para alguns, pensando exclusivamente nos prazo decadencial tributário que dispõe a Receita ou por 12 ou mesmo 16 anos, como têm sustentado os criminalistas pensando nos prazos prescricionais em abstrato dos crimes de evasão de divisas e lavagem de dinheiro.
Acresce que há uma imensa dificuldade prática para obtenção das informações necessárias junto às instituições financeiras no exterior que, em geral, fornecem extratos de movimentação bancária de períodos bastante limitados, quando não houve mudança de instituição depositária no período,.
E como fazer com as declarações ao Banco Central? Será viável retificar ou mesmo fazer declarações de tantos anos pretéritos? Parece que não.
O caráter voluntário do RERCT tem servido de argumento para aceitar, sem mais, as regras do manual de perguntas e respostas. Afinal, quem não declarou é criminoso e o Fisco, sob as vestes do High Sparrow, comandará owalk of atonement desses contribuintes que deverão se penitenciar por seus crimes cometidos em um passado remoto.
No entanto, a Lei 13.254, de 2016 é uma lei de ANISTIA, termo de raiz gregaamnestía, a mesma de amnésia, que, como se sabe, significa ESQUECIMENTO.
Uma lei de esquecimento, de pacificação social, deve ser simples, direta, categórica.
Tome-se, como exemplo, a Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, a famosa lei da anistia política, que começou a desmontar o regime militar:
“Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementar”.
O prazo fixo do período anistiado é extreme de dúvidas. O crime político ou conexo, o crime eleitoral ou a suspensão de direitos políticos ocorridos no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 foram pura e simplesmente anistiados, juridicamente esquecidos.
A Lei do RERCT, como lei de anistia que é, não pode se prestar a dúvidas. Tergiversar a respeito do tempo de retroação do valor patrimonial, exigindo o filme da vida pretérita, quando o mais simples e legítimo seria o retrato de um tempo dado, fixo, determinado, nos parece ser, no mínimo, contraproducente, contrário aos propósitos e à natureza da lei. Recordar anos pretéritos nada tem a ver com esquecimento, com anistia.
Evento que contou com os seguintes palestrantes: dr. Paulo Ricardo Cardoso, secretário adjunto da Receita Federal do Brasil; dr. Heleno Taveira Torres, professor titular de Direito Financeiro da USP; dr. Fabricio Dantas Leite, ex-secretário executivo adjunto do Ministério da Fazenda e membro da comissão redatora da Lei 13.254/2016; dra. Fernanda Tórtima, presidente da Comissão de Direito Penal da OAB; e dr. Gustavo Noronha, professor de Direito Tributário da PUC-Rio.
Roberto Duque Estrada é advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Sócio do escritório Xavier, Duque Estrada, Emery, Denardi Advogados.

 

Fonte: Consultor Jurídico – 27/07/2016.

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