Por não estar bem fundamentado e não apresentar resultado útil, o sigilo judicial da Medida Cautelar Fiscal que determinou o arresto superior a R$ 1 bilhão de bens de empresas e sócios da família Brandalise, ex-dona da Perdigão, foi derrubado em segunda instância. A decisão é do juiz Eduardo Vandré Garcia, convocado da 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

Ao acolher o mandado de segurança impetrado pelo escritório Cesar Peres Advocacia Empresarial, de Porto Alegre, o relator ainda considerou que a ordem de arresto para a citação de 101 arrolados no processo, em decisão da 1ª Vara Federal de Caçador (SC), não apresentaria nenhum resultado útil.

Ele observou que ao contrário do que foi determinado pelo juiz em relação a citação dos requeridos para contestação, sob pena de revelia, a Secretaria da 1ª Vara Federal de Caçador expediu o mandado de citação ao requerido antes do cumprimento de todas as providências — ou seja, o autor teve ciência da medida cautelar fiscal ao ser citado, recebendo cópia da decisão, mas não da inicial.

“Se é possível à parte liquidar seu patrimônio e frustrar a medida judicial — à míngua de mais extensa fundamentação na decisão de primeiro grau que sinalize em outro sentido, parece razoável supor que o só fato de conhecer a decisão judicial já permitiria à parte adotar as condutas que se quer evitar, ou seja, a evasão dos seus bens. Por outras palavras: não ficou claro na decisão por qual razão o conhecimento da petição inicial e documentos facilitaria às partes a frustração do cumprimento de uma medida, cujo teor já lhes foi dado conhecer”, escreveu o juiz.

Desde o dia 16 de janeiro, a empresa representada pelo escritório — que já foi propriedade dos Brandalise e hoje é prestadora de serviços — está com os bens móveis arrestados, sem poder dividir lucros ou dividendos, e seus procuradores não podem atuar no processo. Segundo determinou o juiz Anderson Barg, da 1ª Vara Federal de Caçador, a medida era necessária “a fim de evitar que os requeridos [atingidos pelo arresto] frustrem o resultado das diligências”.

Para o relator, o fundamento é absolutamente insuficiente para impor uma exceção ao exercício do direito de defesa. A seu ver, o juiz de origem precisaria justificar sua decisão mediante análise detalhada dos fatos, fazendo referência a elementos empíricos que sinalizassem a necessidade da restrição imposta.

Arresto bilionário
A decretação da indisponibilidade de bens e direitos das pessoas físicas e jurídicas arroladas no Mandado de Arresto de Bens e Citação, expedido pela 1ª Vara de Caçador, busca garantir a execução de R$ 1,078 bilhão, cobrados pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN). A medida, que atingiu pessoas físicas e jurídicas em oito estados, baseia-se na constatação pelo juízo de origem de que as empresas pertencentes à família Brandalise/Bonato formam um grupo econômico cujo objetivo é a sonegação de impostos.

O titular da vara, juiz federal Anderson Barg, chegou a descrever, com algumas minúcias, como a família organizou a intrincada estrutura societária para promover “blindagem patrimonial” e encobrir a verdadeira natureza das transações. Para ele, os diversos contratos sociais das dezenas de empresas do grupo, estruturadas sob a forma de holdings, comprovam a ocultação de receitas e bens por meio dos seguintes métodos:

— subscrições de capital social de determinadas empresas com recursos emprestados de outras holdings (todas do mesmo grupo);
— absorção de prejuízos contábeis por meio da redução do capital social das empresas, em uma teia quase interminável;
—incorporações e cisões parciais e totais de empresas holding, por e para empresas do grupo, com a diluição do passivo nos respectivos registros contábeis;
— constantes alterações das razões sociais das empresas do grupo, com integralização mediante entrega de bens imóveis;
— prestações recíprocas de serviços de administração e consultoria;
— uma infinidade de empréstimos entre pessoas físicas e jurídicas do grupo, sem nenhuma capacidade financeira para justificar patrimônio a descoberto;
— utilização de advogados, contadores, administradores, comerciantes, donas-de-casa e funcionários como ‘‘laranjas’’ (interposição fraudulenta de pessoas);
— dação em pagamento com imóveis a financeiras;
— patrimônio das holdings utilizado pela família sem pagamento de aluguel;
— empresas devedoras pagando aluguéis altos no valor da parcela do mútuo;
— representações comerciais recíprocas, para transferência de valores.

O juiz Anderson Barg concluiu ser típico e flagrante caso de “esvaziamento patrimonial”, dada à atuação por empresas interpostas e formação de grupo econômico de fato. Por esta razão, além dos ativos empresariais, o juiz decretou a indisponibilidade de dinheiro em moedas nacional ou estrangeira e objetos de valor localizados nas casas e escritórios de sócios ou administradores, inclusive os guardados em cofres. Ou seja, desconsiderou a personalidade jurídica das empresas executadas pela Fazenda, atingindo a pessoa do sócio ou administrador.

“Levantar o véu da pessoa jurídica, penetrar na pessoa jurídica ou desconsiderá-la traduz uma reação do ordenamento jurídico e da jurisprudência contra a utilização abusiva da personalidade jurídica para se atingir fins ilícitos em benefício de pessoas físicas. A jurisprudência brasileira há muito vem desconsiderando a personalidade jurídica para se capturar bens de pessoas físicas acobertados pelo manto da ficção jurídica”, escreveu o juiz no Mandado e Arresto.

Citando precedente da ministra Nancy Andrighi, do STJ, o julgador entende que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica dispensa a apresentação de ação autônoma, desde que o juiz verifique os pressupostos de sua incidência no próprio processo de execução. Afinal, concluiu, o grupo criou diversas empresas jurídicas a fim de manter a exploração de suas atividades e lesar o Fisco.

Situação kafkiana
Surpreendido no arresto bilionário promovido contra bens e ativos da família Brandalise, o cliente de Cesar Peres, assim como os demais arrestados, foi intimado a apresentar defesa “sob pena de revelia”. O problema é que os autos da Medida Cautelar Fiscal estavam sob segredo de justiça, o que impedia a defesa de fazer a juntada de procuração e ter conhecimento dos fatos. O sistema da Justiça Federal em Santa Catarina indicava o processo como ‘‘não encontrado’’.

Um dos sócios do escritório chegou a enviar e-mail à diretora em exercício da 1ª. Vara Federal de Caçador, Paula Pulga, para tentar derrubar a restrição e poder atuar no processo. Sem sucesso, pois recebeu a seguinte resposta: “Informo que este processo corre em sigilo nível 5 (acesso restrito ao juiz) e, por conta disso, as partes ainda não possuem acesso ao seu teor. A restrição se findará assim que o último mandado de arresto e citação retornar devidamente cumprido’’.

Em novo e-mail endereçado à diretora o advogado César Peres lembrou que estava sendo impedido de trabalhar e que não era razoável nem legal esperar até o fim da citação dos outros 100 réus. Peres se ofereceu para ir pessoalmente até Caçador a fim de dialogar com o juiz, “para encontrar uma forma de que todos os interesses sejam preservados, sem o cerceamento de qualquer direito”. Afinal, destacou no e-mail, seu cliente trabalha dentro da estrita legalidade e não pode aceitar restrições indiscriminadamente. “Fomos citados e precisamos tomar conhecimento dos autos”, disse.

A nova mensagem, entretanto, não sensibilizou a diretora, que não se manifestou. A única saída que lhe restou foi interpor Mandado de Segurança, por cerceamento da defesa e violação das prerrogativas da advocacia. “Independentemente do nível de sigilo pretendido pelo magistrado, obviamente que após o cumprimento de uma das medidas contra qualquer dos réus, caso eles tenham algum tipo de liame, restará frustrado qualquer sigilo. Simples assim”, argumentaram os procuradores no recurso.

“Não há dúvida que, quando o juiz adota medida tal como a delineada nos autos, impõe-se uma exceção ao devido processo legal — que não prevê tal grau de sigilo após a citação —, ao direito de petição — uma vez que o sistema sequer aceita o protocolo eletrônico de petições — e, sobretudo, ao direito defesa, que pressupõe que a parte tenha meios de saber o que pesa contra si e por que razão está sendo privada do seu patrimônio”, escreveu o juiz convocado Eduardo Vandré Garcia na decisão que concedeu o mandado de segurança.

Conjur

5 de fevereiro de 2015, 16h34

Por Jomar Martins  

 

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