Ao menos 50 fundos de investimentos, dez bancos e 30 mil brasileiros que declaram ser não residentes passarão neste ano por um pente-fino da Receita Federal. Não se tratam ainda de fiscalizações oficiais, mas de um acompanhamento especial que o Fisco está realizando após perceber que fundos de investimentos estruturados – em especial os FIPs – têm sido utilizados em planejamentos tributários considerados “abusivos” ou “agressivos”.
O resultado dessa estratégia, aos olhos do Fisco, é que investidores sem direito por lei estariam usufruindo do benefício de isenção do Imposto de Renda (IR) destinado a estrangeiros. Em outra situação, estariam adiando por tempo indeterminado o recolhimento do tributo por meio de fundos criados exclusivamente para essa finalidade.
As informações são da Delegacia de Maiores Contribuintes (Demac) de São Paulo. Há no momento no órgão seis acompanhamentos dessa natureza em curso. Apesar dos dados serem regionais, o tema está entre as “as operações que serão objeto de fiscalização em 2016” da Receita Federal no país, conforme divulgado no planejamento anual do órgão. Nessa listagem, os FIPs estão abaixo apenas dos planejamentos que envolvem ágio na negociação entre empresas.
A delegada da Demac de São Paulo, Márcia Cecília Meng, afirma que há dois focos da Receita neste momento. Identificar brasileiros (sejam pessoas físicas ou jurídicas) que se passam por não residentes para deixar de recolher a alíquota de 15% do imposto sobre seus rendimentos (simulação). E operações montadas com o propósito de fugir da tributação do IR sobre o ganho de capital com a venda de empresas – consideradas fraudulentas pelo desvirtuamento jurídico da função de um fundo de investimento.
Na primeira situação, conforme Márcia, há desde casos muito simples a complexas operações verticais que escondem o real beneficiário do fundo. No exemplo mais singelo, visto recentemente, ela cita uma pessoa física que dizia ser não residente tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, onde mantinha investimentos. “Para a SEC [Securities and Exchange Commission dos EUA] ele declarava morar no Brasil. À Receita dizia residir em Delaware. O contribuinte não era tributado em lugar algum”, afirma.
A falsa informação foi descoberta com uma rápida consulta ao site do órgão regulador americano – o endereço informado pelo brasileiro ficava na Avenida Brigadeiro Faria Lima, na capital paulista.
Nos Fundos de Participação em Investimentos (FIP), a alíquota zero sobre os rendimentos concedida a residentes (com até 40% de cotas) ou domiciliados no exterior é assegurada pelo o artigo 3º da Lei nº 11.312, de 2006.
Segundo Márcia, o uso indevido desse benefício seria o que mais preocuparia neste momento a Receita, pois com ele há a saída de capitais do Brasil. Por isso, a análise desses 30 mil não residentes declarados à Receita, com investimentos em FIP ou operações em bolsa de valores, ocorrerá para averiguação da “consistência” dos dados informados.
Dentre outras situações observadas, conforme a delegada, há a venda de empresas brasileiras e a transferência das cotas para fundos estrangeiros. Até aí não existiria ilegalidade. A questão estaria no fato de as cotas passarem para o fundo antes da venda efetiva para se evitar o pagamento de IR sobre o ganho de capital.
Há ainda simulações em operações com longas cadeias para a obtenção da isenção de imposto, seja para mascarar o beneficiário (brasileiro residente) ou “diluir” as cotas para não se evidenciar que um estrangeiro teria mais de 40% de participação no fundo – acima deste montante a alíquota zero deixa de existir.
Fisco analisa 30 mil não residentes declarados com investimentos em FIP ou bolsa de valores
Segundo Márcia, a identificação dos cotistas é sempre problemática quando se trata de um fundo de investimento situado fora do Brasil. Nessa linha, os bancos que representam fundos estrangeiros no Brasil poderão, a depender da situação, ser responsabilizados pela Receita (sujeito passivo solidário) pelo pagamento de imposto e multas do cotista não identificado. “A instituição financeira não pode representar alguém que não sabe quem é, vamos responsabilizar solidariamente quem der causa a fraudes”, afirma Márcia.
De acordo com ela, um banco já foi autuado solidariamente em uma operação de alguns bilhões de reais. A instituição não identificou para o Fisco quem seriam os beneficiários finais de cotas de um FIP. Márcia afirma ter ficado evidente, nesse caso, seja por intenção ou por falta de preocupação no momento de aceitar o cotista estrangeiro, que o banco gerou a impossibilidade da identificação solicitada.
“Temos nos deparado com situações em que as instituições financeiras foram extremamente negligentes nessa identificação. Entendemos que, com isso, abrem-se as portas para uma série de fraudes em nosso país”, diz a delegada da Demac.
O secretário-adjunto da Receita Federal, Paulo Ricardo de Souza Cardoso, afirma que há algum tempo os fundos em geral têm sido acompanhados pelo órgão. Percebeu-se, como explica, a necessidade de um trabalho “in loco” com as administradoras por verificar-se indícios de planejamentos tributários abusivos. O que é fortemente combatido pelo órgão.
Segundo Cardoso, esse não é um movimento da fiscalização brasileira, mas uma tendência internacional em razão dos valores envolvidos nessas operações e a dificuldade geral que existe em se identificar quem são os verdadeiros investidores. “Identificar os operadores por meio dos fundos é um desafio porque muitas vezes é estrangeiro, mas o investidor é brasileiro.”
Cardoso avalia que essa identificação será facilitada a partir de 2018 com a troca automática de informações entre os diversos países que aderiram à Convenção Multilateral sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Tributária, da qual o Brasil é signatário. “Cada fundo tem sua peculiaridade, queremos incentivar investimentos de longo prazo, de capital que chega para esse fim e não que entra de manhã e sai de tarde”, afirma.
Advogados que atuam em mercados de capitais e tributaristas afirmam que o acompanhamento da Receita já é sentido na área, em razão do aumento de pedidos de informações a administradoras e pelas autuações que envolvem cifras altíssimas.
“Há autuações milionárias contra investidores e gestoras, mas nenhum caso chegou ao Carf e à Justiça ainda”, afirma o advogado Diego Aubin Miguita, do escritório Vaz, Barreto, Shingaki e Oioli. A discussão, de acordo com ele, varia conforme as características de cada situação e, muitas vezes, a Receita entende ter havido fraude ou simulação nas operações. “O que gera insegurança sobre os critérios que serão considerados nos julgamentos.”
Para Miguita, o tema estará entre as grandes discussões tributárias dos próximos anos e a Receita Federal deverá seguir nessas situações o mesmo roteiro que já utiliza para avaliar os demais casos de planejamento tributário (leia Autuações por planejamento somam R$ 184 bi).
O aumento das fiscalizações na área é observado há cerca de um ano e meio, conforme Eduardo Herszkowicz, sócio das área de fundos de investimento do Souza Cescon Advogados. Segundo o advogado, o Fisco tem ido atrás de operações que estariam prestes a prescrever, quando completariam cinco anos.
De acordo com a sócia da área tributária do Tozzini Freire, Ana Cláudia Utumi, a questão preocupa e seria importante a Receita distinguir bem as situações para não espantar os bons fundos do Brasil, que legitimamente teriam direito ao incentivo. Segundo ela, o FIP é um bom incentivo para as pessoas fazerem poupança, reinvestirem em empresas e movimentar a economia. “O desafio da Receita será identificar o que é realmente artificial.”
Fonte: Seteco – 13/07/2016 .