A regularização de capitais brasileiros enviados ao exterior foi objeto de amplo debate nos últimos anos.
Nas audiências públicas realizadas no Congresso Nacional, sempre nos posicionamos em favor da edição de normas que possibilitassem a regularização de capitais de origem lícita remetidos irregularmente ao exterior, sobretudo nas décadas de 1980 e 1990, quando o País sofria as turbulências políticas e econômicas do processo de democratização. Consolidada a estabilidade econômica e política do país, é justo que os cidadãos que enviaram recursos ao exterior oriundos de atividades lícitas possam regularizar a situação e viver em paz.
Muitos países enfrentaram a questão e criaram soluções legislativas, especialmente para viabilizar transição suave para uma nova era de transparência fiscal e bancária, a partir de acordos internacionais firmados em escala mundial. Estudo da OCDE revela que 47 jurisdições disciplinaram a matéria, como, por exemplo, Estados Unidos da América, Alemanha, Reino Unido, Itália, Portugal, Espanha, México, Argentina (Update on Voluntary Disclosure Programmes: A pathway to tax compliance – Agosto/2015).
Seguindo essa tendência, o Brasil celebrou com os Estados Unidos da América acordo para “Melhoria da Observância Tributária Internacional e Implementação do FATCA” (Foreign Account Tax Compliance Act), que entrou em vigor em meados de 2015, e subscreveu a “Convenção sobre Assistência Mútua Administrativa em Assuntos Tributários”, acordo multilateral que aguarda ratificação pelo Congresso Nacional.
Diante dessa realidade e considerando a necessidade de atrair capitais, conter a escalada do dólar e elevar a arrecadação, o Congresso Nacional aprovou a Lei 13.254/2016, que institui o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT) de recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados ou declarados incorretamente, remetidos, mantidos no exterior ou repatriados por residentes ou domiciliados no país, anteriormente a 31 de dezembro de 2014. A regularização se operacionaliza por intermédio da anistia das infrações tributárias, cambiais e penais relacionadas ao envio de recursos e manutenção dos ativos no exterior.
O corte temporal em relação aos fatos alcançados pela nova lei justifica-se por razões de conveniência política. O legislador não desejou conceder anistia ampla, até para não estimular a fuga de capitais durante a tramitação do projeto de lei (PL 2960/2015), com vistas a obter tributação menor, por ocasião da sua regularização.
Para fruição dos benefícios legais, deve o interessado pagar imposto de renda de 15% e multa de igual valor sobre o montante dos ativos a serem regularizados, além de cumprir obrigações acessórias. A cobrança baseia-se na presunção de que os valores remetidos ao exterior não tenham sido tributados no Brasil e de que o fato gerador do imposto seria o último dia de 2014. Trata-se de um “forfait”, que dispensa a investigação das circunstâncias individuais dos contribuintes, por razões de praticabilidade.
Essa fórmula tem sido contestada por juristas, que sustentam que o imposto recai sobre o patrimônio e não sobre a renda do interessado, o que o tornaria inconstitucional, assim como a multa correspondente, por falta de lei complementar (CF, artigo 154, I). Deve ser ponderado, porém, que a exação será devida apenas por quem, voluntariamente, optar pela regularização de ativos no exterior, o que mitiga a compulsoriedade inerente aos tributos, na linha de precedente do Supremo Tribunal Federal (ADI 2.056/MS). Essa orientação implica dúvida razoável quanto à alegada inconstitucionalidade do chamado “imposto de renda” e respectiva multa.
Contudo, as críticas não retiram o mérito da Lei 13.254/2016, que se fundamenta em princípios constitucionais relevantes (segurança jurídica, dignidade humana) e foi editada em momento oportuno, além de, no geral, contemplar benefícios e contrapartidas razoáveis para os optantes ao RERCT.
Nada obstante, cabe tecer breves considerações acerca de algumas questões pontuais que vêm sendo suscitadas por interessados na adesão ao regime.
Licitude da origem dos recursos
A Lei 13.254/16 define como recursos de origem lícita os “oriundos de atividades permitidas ou não proibidas por lei, bem como o objeto, o produto ou o proveito dos crimes previstos no § 1º do artigo 5º”.
Portanto, são lícitos os recursos obtidos em decorrência de atividades empresariais ou profissionais, ou mesmo por herança e outras fontes regulares. É irrelevante a circunstância de os recursos terem ou não sido contabilizados ou declarados quando do recebimento (por exemplo, “caixa dois”).
Entretanto, muitos receiam aderir ao RERCT e não conseguir provar que os recursos foram obtidos licitamente.
A lei não exige tal comprovação, mas apenas a declaração de que o patrimônio amealhado decorre de atividades lícitas. Isso se justifica, pois a remessa irregular de recursos supõe a ocultação de seu recebimento e propriedade. Assim, não faria sentido exigir a comprovação da origem dos recursos. Tal exigência poderia caracterizar “prova impossível”, comprometendo a eficácia do RERCT.
Isso não significa que o interessado possa prestar declaração falsa, sem qualquer consequência, ou que nenhuma fiscalização possa ocorrer quanto à origem lícita dos recursos enviados ao exterior.
Caso as autoridades competentes verifiquem que o patrimônio mantido no exterior é manifestamente incompatível com o retorno normalmente esperado das atividades desenvolvidas pelo interessado e declaradas ao Fisco no passado, nada impede seja ele instado a justificar o que declarou. Sendo a justificativa razoável, deve ser aceita, dispensada qualquer prova.
Mudança de domicílio fiscal
Como alternativa à adesão ao RERCT, tem sido cogitada a mudança de domicílio fiscal para outro país, de forma a evitar sanções penais e exigências tributárias em face dos titulares de patrimônio não declarado.
A mudança não elide os tributos e os crimes decorrentes de atos praticados até então. Ademais, basta que a Receita Federal identifique em seu banco de dados quem alterou seus domicílios fiscais e solicite aos países de destino informações sobre seus patrimônios, com base em acordos internacionais, para instaurar os procedimentos tendentes à exigência dos tributos e aplicação das sanções cabíveis.
Caso a mudança de residência seja meramente formal, continuando o contribuinte a ter domicílio no país, poderá a autoridade fiscal considerá-lo residente.
Condenação em ação penal
Não podem aderir ao RERCT os condenados por decisão definitiva pela prática dos mesmos crimes anistiados pela lei. Se a condenação for pela prática de outros crimes, não há impedimento.
Por outro lado, a adesão por réus condenados por decisões não definitivas suscita dúvidas. Isso porque a Presidente da República vetou dispositivo que impedia a adesão somente no caso de condenação definitiva por crimes listados na lei, o que poderia indicar que não poderiam aderir os réus com decisões condenatórias sujeitas a recurso. Este entendimento, porém, não se coaduna com o artigo 5º, §2º, II, da lei, que admite a anistia até o trânsito em julgado da decisão condenatória.
Nada obstante, a IN RFB 1.627/16 impede a adesão por quem tiver condenação não transitada em julgado. Em princípio, a restrição afigura-se ilegal. Todavia, como não se esclarece se o óbice seria uma condenação em primeira ou segunda instância, seria possível adequar o ato normativo à recente orientação do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a presunção de inocência é mitigada com a confirmação de sentença penal condenatória pelo tribunal competente (HC 126.292).
Ativos alienados antes de 31/12/2014
No curso dos debates legislativos, foi reconhecida a necessidade de possibilitar àqueles que não tinham mais ativos no exterior a extinção dos ilícitos fiscais, cambiais e penais decorrentes de atos passados, ainda não alcançados pela decadência ou prescrição.
Contudo, a lei apresenta lacuna quanto ao método de quantificação do patrimônio, para efeito de apuração do imposto e da multa a recolher. Ela prevê apenas que as pessoas que tenham remetido recursos ao exterior, porém, não detenham a propriedade de ativo correspondente em 31/12/2014, devem indicar na declaração do RERCT “o valor apontado por documento idôneo que retrate o bem ou a operação a ele referente”.
Entretanto, não foi indicada a data-base a ser considerada para apuração dos valores existentes no exterior. Por exemplo, se os recursos tiverem sido enviados ao exterior em janeiro de determinado ano e paulatinamente consumidos até janeiro do ano seguinte, qual será o valor a considerar? O valor inicialmente remetido ao exterior? O último saldo disponível, a exemplo do que ocorre com as contas bancárias existentes em 31/12/2014? Outra inconsistência é a data-base para conversão em dólares de bens avaliados em outras moedas. Por exemplo, um imóvel que tenha sido alienado em 2012 por uma determinada quantidade de euros deve ser convertido em dólares em 31/12/2014?
A IN 1.627/2014 resolveu adequadamente a questão, ao determinar a adoção do “valor presumido” em 31/12/2014 como critério para a quantificação do patrimônio. Isso possibilita a adoção das mesmas regras aplicáveis aos bens detidos na mesma data, para fins de quantificação do patrimônio a ser declarado e recolhimento do imposto e multa.
Trusts, fundações e figuras afins
A lei comporta interpretação no sentido de que não seriam de titularidade do declarante os ativos transferidos a “trust de quaisquer espécies, fundações, sociedades despersonalizadas, fideicomissos, ou dispostos mediante a entrega a pessoa física ou jurídica, personalizada ou não, para guarda, depósito, investimento, posse ou propriedade de que sejam beneficiários efetivos o interessado, seu representante ou pessoa por ele designada”.
Entretanto, o direito vigente em cada jurisdição usualmente distingue entre estruturas jurídicas de caráter discricionário (ou irrevogável) e não discricionário (revogável), de tal forma a considerar como patrimônio separado apenas as primeiras, nas quais o instituidor e os beneficiários não têm livre disposição sobre os ativos nelas compreendidos.
A IN 1.627/16 procurou diferenciar as figuras a partir do conceito de “beneficiário”, como se fossem discricionárias as estruturas em que o instituidor cumulasse a condição de beneficiário, e não discricionárias as estruturas em que apenas terceiros fossem beneficiários. O critério é inexato, pois, mesmo não sendo beneficiário, o instituidor pode ter liberdade para determinar a destinação dos bens do trust, fundação ou afim, o que caracterizaria a propriedade.
Em regra, a valoração do patrimônio em 31/12/14 deverá ser feita da seguinte forma: bens de titularidade direta do trust, fundação ou afim deverão ser objeto de avaliação; bens sob a titularidade de pessoas jurídicas por eles controladas deverão ser avaliados em função do patrimônio líquido da empresa e da participação no capital social.
No tocante a obras de arte (e quaisquer outros bens) de titularidade direta ou indireta (por exemplo, por meio de pessoas jurídicas) de trusts, fundações e afins, entende-se devam ser elas consideradas para efeito de quantificação do patrimônio a ser regularizado. A situação difere daquela observada em se tratando de pessoa física que detenha a propriedade direta de obras de arte.
Beneficiários de bens aportados em trusts, fundações e figuras afins
Seguindo a distinção feita pela RFB somente os beneficiários efetivos devem declarar os bens de trusts, fundações e afins, na proporção que lhes couber.
Para tanto, deve-se verificar a disponibilidade sobre os bens em questão, ou seus frutos, sendo inexigível a declaração de bens cuja percepção dependa de evento futuro e incerto. Por exemplo, se o trust for discricionário e o direito aos dividendos só surgir no momento em que houver decisão do trustee nesse sentido, nada deverá constar da retificadora.
Utilização da declaração contra o optante
Alguns interessados manifestam receio de que as informações prestadas possam ser usadas contra si pelas autoridades que as elas tenham acesso.
O receio parece infundado. A lei impede o uso da declaração como fundamento, direto ou indireto, de procedimento tributário ou cambial. Ela também impede sua utilização como único elemento para embasar procedimento investigatório ou procedimento criminal.
Assim, em qualquer caso, a declaração só poderia ser usada para fins penais, como elemento adicional a outros que as autoridades policiais ou o Ministério Público obtenham pelos meios normais de investigação.
Riscos no caso de declaração de inconstitucionalidade do RERCT
Por fim, especula-se o que poderia ocorrer caso a lei instituidora do RERCT fosse declarada inconstitucional.
Em princípio, parecem remotas as chances de acolhimento de arguição de inconstitucionalidade da anistia penal, pois a Constituição Federal prevê sua concessão, exceto para crimes relacionados à prática de tortura, tráfico de drogas, terrorismo e crimes hediondos, que não são contemplados pela lei instituidora do RERCT.
Há, porém, dúvidas quanto à constitucionalidade da exigência de imposto e multa sobre os bens regularizados, já que, como visto inicialmente, há quem sustente estar-se diante de tributo novo cuja exigência dependeria de lei complementar, ao passo que, em casos similares, já decidiu o Supremo Tribunal Federal que os valores cobrados para adesão a regime de interesse do optante nem sequer configuram tributo.
Na hipótese de a lei vir a ser liminarmente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal antes da produção de seus efeitos, isto é, antes de os interessados aderirem ao RERCT e pagarem o imposto e a multa, o regime ficará suspenso até decisão final do Tribunal.
Caso, todavia, a manifestação da Corte Suprema só venha a ocorrer após a produção de efeitos da lei, como referido anteriormente, seria provável a manutenção dos benefícios para os que nela confiaram, por razões de segurança jurídica.
Nesse contexto, é recomendável aguardar, por prazo razoável, a eventual propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade e a manifestação do Supremo Tribunal Federal acerca de pedido de suspensão da lei do RERCT, respeitada a data-limite de adesão (31/10/2016).
Pedido de restituição do imposto e multa
Diante da dúvida quanto à constitucionalidade do imposto e da multa exigidos para adesão ao RERCT, tem sido cogitada a apresentação de pedido individual de restituição dos valores inicialmente pagos.
Independentemente do mérito da questão, deve ser sopesado o risco de se entender que a devolução do tributo obstaria a fruição dos benefícios legais, já que isso supõe a integral aceitação das condições estabelecidas, inclusive a confissão e o efetivo recolhimento do montante exigido a título de imposto e da multa.
Fonte: Consultor Jurídico – 21/03/2016 .